Essa semana, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
publicou uma decisão sob a seguinte ementa:
Apelação - Anulatória - Doação - Ascendente para descendentes -
Parcial procedência - Liberalidade que atingiu a legítima. Doações declaradas
inoficiosas naquilo que excederam à legítima - Necessidade dos réus trazerem à
colação o que receberam em doação - Decisão mantida - Art. 252 do Regimento
Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo. Recurso Improvido.[1]
Bom, até aqui nada demais. Mas, ao analisarmos os fatos
que levaram a essa decisão, temos alguns fatores bem interessantes e que
costumam despertar a curiosidade dos estudantes: os limites da disposição
gratuita do próprio patrimônio e a existência de herdeiros necessários. O que
pode e o que não pode?
Para entender esses limites, precisamos trabalhar não
apenas com o direito das sucessões, mas buscar aquilo que aprendemos no direito
dos contratos, então vamos lá.
O art. 544 do Código Civil diz que: A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro,
importa adiantamento do que lhes cabe por herança.
Sabemos que descendentes e cônjuge são herdeiros
necessários, ou seja, aqueles que não podem ser excluídos da sucessão por ato
de liberalidade. Então, diz o código que quando alguém faz uma doação a uma
dessas pessoas, está, na verdade, adiantando, total ou parcialmente, uma futura
herança. Isso significa que, quando do falecimento do doador, o donatário
deverá trazer os bens recebidos à colação. Em outras palavras, ele vai abater
os bens que recebeu da cota a que ele tem direito agora.
Todavia, no momento da doação, o doador pode dispensar o
donatário da futura colação, desde que o faça expressamente no instrumento de
contrato. Mas aqui é preciso ter cautela: essa dispensa encontra limites na
legítima, pois o art. 549 nos diz que nula
é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da
liberalidade, poderia dispor em testamento.
A legítima, como sabemos, é a fração do patrimônio de uma
pessoa que fica “reservada” para os herdeiros necessários.
Pois bem. Vamos agora ao caso que gerou a decisão
transcrita no início e que (infelizmente) se repete em muitas famílias desse
país (e que pode gerar uma boa questão de prova!).
Aparício, lavrador bem sucedido no ramo de fabricação de
aguardente, possuía cinco filhos nascidos de uma relação jurídica matrimonial.
Em determinado momento, Aparício se tornou réu numa ação de investigação de
paternidade intentada por Magdo. Assim, para privilegiar os filhos matrimoniais
em detrimento do suposto filho numa futura sucessão, Aparício doou boa parte de
seus bens aos cinco filhos já reconhecidos. Confirmada a paternidade na ação
judicial, Magdo ajuizou ação anulatória da doação feita por Aparício aos outros
filhos, por se tratar de doação inoficiosa, ou seja, que fere os limites da
legítima.
Em sua defesa, dentre outras coisas, os réus alegaram que
“a inicial deveria ter sido rejeitada de
plano pela impossibilidade jurídica do pedido uma vez que o autor estava
litigando sobre herança de pessoa viva, o que não pode ser admitido”.
Têm razão os réus? A resposta invariável é: não. Vejamos.
A respeito da herança de pessoa viva, o que o nosso
Código Civil veda é que esta seja objeto de contrato (art. 426). É o que se
chama de pacta corvina, apenado com
nulidade absoluta por ilicitude do objeto. Não é o que acontece no presente
caso.
Observe-se que Magdo não está celebrando qualquer negócio
jurídico tendo por objeto futura herança. O que ele pretende, na qualidade de
terceiro prejudicado, é reconhecer a nulidade da doação nos termos do art. 549.
Segundo Paulo Luiz Netto Lobo, ação pode ser proposta a qualquer tempo pelo
herdeiro prejudicado: “Não se aguarda a
abertura da sucessão porque a ação tem por objeto contratos entre vivos e é
referente ao momento da liberalidade”[2].
Nesse sentido, vale destacar também o ensinamento de
Nelson Rosenvald, transcrito na própria decisão:
“. a ação de redução das doações inoficiosas poderá ser ajuizada em
vida. Equivocam-se os que pensam se tratar de discussão sobre herança de pessoa
viva (art. 426 do CC). Em verdade, temos um contrato de doação, negócio
jurídico inter vivos cuja nulidade surge ao tempo da liberalidade. Aí nasce a
pretensão imprescritível (art. 169 do CC) à redução do excesso, pois se deu a
violação do direito subjetivo à legítima do herdeiro necessário” (in Código
Civil Comentado coordenado pelo Min. Cezar Peluso, Manole, 6ª ed. 2012,
comentário ao art. 549, p. 597)
Feitas estas considerações, entendemos porque a ação
anulatória proposta por Magdo foi julgada procedente. Desse modo, os bens
recebidos pelos donatários em violação da legítima deverão retornar ao monte,
para serem repartidos igualmente entre os herdeiros da mesma classe e grau.
[1] TJSP – AC nº
0007757-63.2005.8.26.0101, Relator Egidio Giacoia, 3ª Câmara Cível, J.
18/06/2013.
[2] LÔBO, Paulo Luiz Netto;
AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao código civil.
São Paulo: Saraiva, 2003. v. 6. p. 334.
*Publicado originalmente no blog de Direito da Faculdade Apoio/Unifass