sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

#JurisprudênciaComentada: Disposição gratuita do próprio patrimônio e a legítima*

Essa semana, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo publicou uma decisão sob a seguinte ementa:
Apelação - Anulatória - Doação - Ascendente para descendentes - Parcial procedência - Liberalidade que atingiu a legítima. Doações declaradas inoficiosas naquilo que excederam à legítima - Necessidade dos réus trazerem à colação o que receberam em doação - Decisão mantida - Art. 252 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo. Recurso Improvido.[1]

Bom, até aqui nada demais. Mas, ao analisarmos os fatos que levaram a essa decisão, temos alguns fatores bem interessantes e que costumam despertar a curiosidade dos estudantes: os limites da disposição gratuita do próprio patrimônio e a existência de herdeiros necessários. O que pode e o que não pode?

Para entender esses limites, precisamos trabalhar não apenas com o direito das sucessões, mas buscar aquilo que aprendemos no direito dos contratos, então vamos lá.

O art. 544 do Código Civil diz que: A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.

Sabemos que descendentes e cônjuge são herdeiros necessários, ou seja, aqueles que não podem ser excluídos da sucessão por ato de liberalidade. Então, diz o código que quando alguém faz uma doação a uma dessas pessoas, está, na verdade, adiantando, total ou parcialmente, uma futura herança. Isso significa que, quando do falecimento do doador, o donatário deverá trazer os bens recebidos à colação. Em outras palavras, ele vai abater os bens que recebeu da cota a que ele tem direito agora.

Todavia, no momento da doação, o doador pode dispensar o donatário da futura colação, desde que o faça expressamente no instrumento de contrato. Mas aqui é preciso ter cautela: essa dispensa encontra limites na legítima, pois o art. 549 nos diz que nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.

A legítima, como sabemos, é a fração do patrimônio de uma pessoa que fica “reservada” para os herdeiros necessários.

Pois bem. Vamos agora ao caso que gerou a decisão transcrita no início e que (infelizmente) se repete em muitas famílias desse país (e que pode gerar uma boa questão de prova!).

Aparício, lavrador bem sucedido no ramo de fabricação de aguardente, possuía cinco filhos nascidos de uma relação jurídica matrimonial. Em determinado momento, Aparício se tornou réu numa ação de investigação de paternidade intentada por Magdo. Assim, para privilegiar os filhos matrimoniais em detrimento do suposto filho numa futura sucessão, Aparício doou boa parte de seus bens aos cinco filhos já reconhecidos. Confirmada a paternidade na ação judicial, Magdo ajuizou ação anulatória da doação feita por Aparício aos outros filhos, por se tratar de doação inoficiosa, ou seja, que fere os limites da legítima.

Em sua defesa, dentre outras coisas, os réus alegaram que “a inicial deveria ter sido rejeitada de plano pela impossibilidade jurídica do pedido uma vez que o autor estava litigando sobre herança de pessoa viva, o que não pode ser admitido”.

Têm razão os réus? A resposta invariável é: não. Vejamos.

A respeito da herança de pessoa viva, o que o nosso Código Civil veda é que esta seja objeto de contrato (art. 426). É o que se chama de pacta corvina, apenado com nulidade absoluta por ilicitude do objeto. Não é o que acontece no presente caso.

Observe-se que Magdo não está celebrando qualquer negócio jurídico tendo por objeto futura herança. O que ele pretende, na qualidade de terceiro prejudicado, é reconhecer a nulidade da doação nos termos do art. 549. Segundo Paulo Luiz Netto Lobo, ação pode ser proposta a qualquer tempo pelo herdeiro prejudicado: “Não se aguarda a abertura da sucessão porque a ação tem por objeto contratos entre vivos e é referente ao momento da liberalidade[2].

Nesse sentido, vale destacar também o ensinamento de Nelson Rosenvald, transcrito na própria decisão:

“. a ação de redução das doações inoficiosas poderá ser ajuizada em vida. Equivocam-se os que pensam se tratar de discussão sobre herança de pessoa viva (art. 426 do CC). Em verdade, temos um contrato de doação, negócio jurídico inter vivos cuja nulidade surge ao tempo da liberalidade. Aí nasce a pretensão imprescritível (art. 169 do CC) à redução do excesso, pois se deu a violação do direito subjetivo à legítima do herdeiro necessário” (in Código Civil Comentado coordenado pelo Min. Cezar Peluso, Manole, 6ª ed. 2012, comentário ao art. 549, p. 597)

Feitas estas considerações, entendemos porque a ação anulatória proposta por Magdo foi julgada procedente. Desse modo, os bens recebidos pelos donatários em violação da legítima deverão retornar ao monte, para serem repartidos igualmente entre os herdeiros da mesma classe e grau.




[1] TJSP – AC nº 0007757-63.2005.8.26.0101, Relator Egidio Giacoia, 3ª Câmara Cível, J. 18/06/2013.
[2] LÔBO, Paulo Luiz Netto; AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao código civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 6. p. 334.

*Publicado originalmente no blog de Direito da Faculdade Apoio/Unifass

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

STJ autoriza produção antecipada de provas para preservar memória de criança

Fonte: Boletim IBDFAM n.° 310


A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou que seja feita a gravação do depoimento de uma criança de seis anos de idade, supostamente vítima de abuso sexual, como forma de facilitar o resgate da memória do menor, conservando acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).

A ação cautelar de produção antecipada de provas, ajuizada pelo Ministério Público gaúcho, foi extinta pelo juízo da 1ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, mas resgatada em grau de apelação pelo TJ-RS, que autorizou a gravação pelo sistema Depoimento sem Dano.

Segundo o desembargador da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Antônio Daltoé Cezar, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), o sistema depoimento sem dano, atualmente denominado em todo o Brasil como depoimento especial, consiste em criar ambientes dentro do sistema de justiça próprios para receber crianças e adolescentes que necessitem prestar declarações judiciais, observando a situação de desenvolvimento desse ser humano. O sistema dispõe de profissionais especializados (psicólogos e assistentes sociais), para realizar as escutas em salas especiais ligadas às salas de audiência por circuitos de vídeo e áudio.


No entendimento dele, a decisão vai ao encontro das deliberações mais modernas a respeito da proteção à criança e adolescente, porque a produção antecipada de provas pode ser utilizada para instruir o inquérito policial, evitando, assim, que as escutas se repitam desnecessariamente. Além disso, conforme assegura, esse procedimento “abrevia o tempo que corre entre o evento abusivo e a escuta judicial, facilitando as questões de memória".

“Lembremos, que nesse tipo de crime, mais de 80% são crianças, isto é, com onze anos ou menos. A Recomendação n. 33/2010, do CNJ, já orientou nesse sentido. O projeto de lei do novo Código de Processo Penal, já aprovado no Senado, e atualmente na Câmara dos Deputados, trata expressamente dessa possibilidade, facultando ao juiz determinar ou não a produção antecipada de prova”, disse Daltoé Cezar.

Na avaliação do desembargador, o sistema de depoimento especial ajuda, ainda, no livre convencimento do magistrado, visto que possibilita ao juiz rever todo o depoimento, quando do julgamento, bem como aos desembargadores e ministros. “A palavra é importante, mas também o olhar, os gestos, até mesmo uma lágrima”, assegura. E destaca que toda criança tem o direito de ser ouvida, em juízo, a respeito das decisões que porventura venham a lhe afetar, conforme está previsto no artigo 12 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e também no Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, ressalta a importância de que essa escuta seja adequada, principalmente para que não aconteça uma revitimização secundária.

“Já existem estudos acadêmicos, comparando o depoimento especial com o depoimento tradicional, mostrando que os níveis de estresse no primeiro são muito mais baixos, bem como os níveis de satisfação da criança e seus familiares, com essa forma de intervenção, é muito bem recebido”, ressaltou.

O desembargador reflete que a implantação do sistema de depoimento especial em todo o Brasil ainda enfrenta resistência do sistema de justiça, “que, por natureza, é muito conservador e que há grande resistência dos operadores da área penal, especialmente os advogados criminalistas, pois com o depoimento especial a tendência dos níveis de responsabilização é crescer, e muito”. 

Imagem 1 daqui
Imagem 2 daqui 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Momento da Celebração do Casamento: consentimento dos nubentes ou declaração do juiz?

O casamento é um vínculo jurídico que une duas pessoas[1] numa relação regulada pelo Direito de Família. Muito ainda se discute acerca da sua natureza jurídica, se de contrato, de instituição ou de ambos.

A teoria clássica é a contratualista, marcada pela forte influência individualista pós Revolução Francesa (por essa razão também chamada de teoria individualista). Embora o casamento civil já fosse admitido para os protestantes desde 1787 com o Édito de Tolerância, a Constituição francesa de 1791, querendo eliminar a forte conotação religiosa do matrimônio, afirma: La loi ne considère le mariage que comme contrat civil.[2]

Para essa teoria, pois, prevalece a natureza negocial do casamento, consubstanciada no consentimento indispensável à sua concretização. Assim, por exemplo, dizem Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:

Quando se entende o casamento como uma forma contratual, considera-se que o ato matrimonial, como todo e qualquer contrato, tem o seu núcleo existencial no consentimento, sem se olvidar, por óbvio, o seu especial regramento e consequentes peculiaridades.[3]

Para Maria Berenice Dias, para quem a discussão acerca da natureza jurídica do casamento se revela estéril e inútil, talvez, a ideia de negócio de direito de família seja a expressão que melhor sirva para diferenciar o casamento dos demais negócios de direito privado.” [4]

Para a teoria institucionalista, surgida em oposição à teoria clássica, o casamento é uma instituição social. Segundo Venosa, “O casamento faz com que os cônjuges adiram a uma estrutura jurídica cogente predisposta. Nesse sentido apresenta-se a conceituação institucional.[5] Ao lado desse argumento, os defensores da corrente institucionalista sustentam, ainda, a necessidade de uma autoridade pública para conferir aos nubentes o status de casados.

Assim como na dialética hegeliana, do embate das duas teorias, surge a terceira, denominada de teoria eclética ou mista. Nas palavras da professora, Martha Saad,

Na tentativa de conciliar as duas teorias principais, a teoria eclética ou mista considera o casamento como contrato em sua formação, pela imprescindibilidade do acordo de vontades, e instituição em sua duração, pela intervenção do poder público na fixação imperativa das regras e na celebração e pela inalterabilidade de seus efeitos. Para seus adeptos o casamento é um ato complexo.[6]

Com algumas variações, transitando entre a teoria clássica e a eclética, a grande maioria da doutrina parece concordar que o casamento é, enfim, um contrato especial de direito de família.

Delimitar a natureza jurídica do casamento é tarefa importante para se verificar em que momento os nubentes mudam o seu estado civil, em outras palavras, em que momento exato adquirem o status de casados.

Não há qualquer controvérsia acerca das formalidades que revestem a celebração do casamento. A inobservância delas, afora as hipóteses previstas na própria lei, torna o casamento inexistente, consoante entendimento doutrinário.[7] Mas diante de tantas formalidades, em que momento exatamente o vínculo conjugal é estabelecido?

Diz o art. 1.514 do Código Civil: O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

Uma primeira leitura do dispositivo leva a crer que o vínculo apenas se estabelece quando a autoridade celebrante declarar efetuado o casamento. Esse é o entendimento esposado, por exemplo, por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

Após áridas discussões doutrinárias, através das quais alguns optavam por entender existente no momento da declaração de vontade, enquanto outros exigiam a leitura da fórmula sacramental, foram dissipadas as dúvidas através da clarividência do art. 1.514 [...]. Optou, portanto, o direito positivo em reconhecer a existência do casamento no exato instante em que a autoridade promove a leitura da fórmula sacramental, declarando-os casados.[8]

Para Venosa, a redação do art. 1.514 não dissipou a controvérsia, embora realmente uma primeira interpretação exija o pronunciamento da autoridade celebrante.[9]

De acordo com o Código Civil, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento.[10] Ou seja, os atos ocorrem de forma sucessiva e imediata. Por que, então, o questionamento? Bem explica Venosa: A dúvida pode ter efeitos práticos, pois qualquer um dos circunstantes pode morrer nesse ínterim. É importante saber se morreram no estado de casados.[11]

Em que pese o relevo dos autores que não prescindem da declaração da autoridade celebrante, sendo o casamento um contrato de direito de família, como endossa a maioria da doutrina, a melhor exegese parece ser a que diz que ele se aperfeiçoa com o consentimento, tendo o pronunciamento estatal efeito meramente declaratório. Nesse sentido, Stolze e Pamplona prelecionam:

[...] é bom frisar que a concretização do ato matrimonial decorre do consentimento dos noivos, quando manifestam a vontade de se receberem reciprocamente, e não da chancela oficial do presidente do ato, de natureza simplesmente declaratória.
Expliquemos.
Ao consentirem, recebendo-se um ao outro como marido e mulher, os nubentes passam à condição de cônjuges, de maneira que a fórmula oficial dita pela autoridade celebrante, ‘declarando-os casados, na forma da lei’ não tem uma finalidade integrativa ou constitutiva do ato, mas tão somente declaratória da união conjugal.[12]

A reforçar o entendimento contrário, há o argumento da possibilidade de suspensão do casamento se algum dos contraentes se manifestar arrependido, como prevê o art. 1.538, III do diploma civil. Entretanto, seguindo a mesma linha de raciocínio, parece ser mais robusto o argumento pró momento do consentimento, uma vez que a mesma lei civil “admite o casamento sem a presença do celebrante no casamento nuncupativo e, da mesma forma, atribui efeitos civis ao casamento realizado perante autoridade eclesiástica.”[13]

Desse modo, considerando ser o casamento um contrato e considerando, ainda, que nem todas as formas de casamento exigem a presença de autoridade estatal como requisito de existência, uma segunda leitura do art. 1514 do Código Civil permite concluir que, de fato, o casamento se realiza no momento em que os nubentes manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal. O juiz apenas declara-os casados, tendo tal declaração efeito semelhante ao de uma homologação.


Referências Bibliográficas:

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, volume 6: Direito das Famílias. 5 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 6: As famílias em perspectica constitucional. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 6: Direito de Família. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

SAAD, Martha Solange Scherer. A disputa entre as teorias que pretendem explicar a natureza jurídica do casamento in Artigos - F. de Direito da U. Presbiteriana Mackenzie, 2008. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/A_DISPUTA_ENTRE_TEORIAS__NATUREZA_JURIDICA_CASAMENTO-artigo-site-nov-2008.pdf>. Acesso em 28.08.2013.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2013


[1] Conforme art. 1° da Resolução 175/2013 do CNJ: É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
[2] Art. 7° da Constituição Francesa de 1791. Em tradução livre: A lei considera o casamento um contrato civil.
[3] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012. p. 117-118.
[4] DIAS, 2013. p. 157.
[5] VENOSA, 2013. p. 26.
[6] SAAD, 2008. Acesso em 28.08.2013
[7] Nesse sentido, VENOSA, 2013, p. 106 e GONÇALVES, 2012, p.140. Vale aqui destacar a opinião de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, que reputam exageradas as formalidades da celebração: Merece críticas a obsessão do legislador por exageradas solenidades na celebração do casamento. Com efeito, a vocação plural e aberta emprestada à família pela Carta Maior (art. 226, caput) é inconciliável com um apego exacerbado à solenidade nupcial que termina por dar a falsa ideia de uma superioridade jurídica (não existente no sistema constitucional) à família formada pelo matrimônio. In: FARIAS; ROSENVALD, 2013. p. 275.
[8] Op. Cit., p. 279. No mesmo sentido, DIAS, p. 169 e GONÇALVES, p.101.
[9] Op. Cit., p. 92.
[10] Art. 1.535
[11] Op. Cit., p. 92.
[12] Op. Cit., p.184.
[13] VENOSA, Ibidem, p.92

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Dupla maternidade também no Rio Grande do Sul


Depois do TJSP que já havia decidido neste sentido em 2012, o TJRS também deferiu pedido de reconhecimento de maternidade socioafetiva, preservando a maternidade biológica. A notícia trazida pelo IBDFAM diz o seguinte:

TJRS entende que afeto se sobrepõe à lei em ação declaratória de maternidade socioafetiva 
13/08/2013 Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM 
No último dia 7, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reconheceu que é possível a inclusão de nome da mãe socioafetiva nos registros de nascimento de duas crianças. A mulher e as crianças ajuizaram ação declaratória de maternidade socioafetiva, sem excluir o nome da mãe biológica do registro. As crianças terão os registros alterados para que conste, concomitantemente com a maternidade biológica, o nome dos avós maternos, o nome da mãe socioafetiva e dos avós socioafetivos.
Quando a mãe biológica faleceu, em abril de 2006, as crianças tinham 7 e 2 anos de idade. Algum tempo depois, o pai dos menores iniciou o namoro com a autora, tendo os filhos manifestado o desejo de morarem com ela, formando-se forte vínculo afetivo. O pai concordou e respeitando o desejo dos filhos também foi morar com eles, formando todos uma família.
De acordo com a decisão, foram colhidos os depoimentos das crianças, que evidenciaram a relação de filhos e mãe socioafetiva, fruto de longa e estável convivência, baseada no afeto e considerações mútuos. Além disso, foram recolhidas fotografias que revelaram a efetiva participação da mulher na vida das crianças e realizado estudo social na residência dos autores. A avaliação psicológica provou que os menores tiveram boa elaboração do processo de luto da genitora, não apresentando trauma emocional.
Conforme texto da decisão, a matéria é polêmica, mas o Judiciário não pode ignorar essa realidade. O fato de o ordenamento jurídico não prever a possibilidade de dupla maternidade não pode significar, segundo a decisão, impossibilidade jurídica do pedido. “Afinal, não são os fatos que se amoldam às leis, mas sim estas são criadas para regular as consequências que advêm dos fatos, objetivando manter a ordem pública e a paz social”.
Segundo a juíza Carine Labres, substituta na Vara Judicial de São Francisco de Assis, em texto da sentença, as relações de afeto têm desafiado os legisladores que, muitas vezes, por preconceito silenciam face à realidade. “É preciso amadurecimento da sociedade para que se exija uma conduta ativa dos legisladores a ponto de regulamentarem matérias polêmicas”. Para ela, o afeto se sobrepõe à lei, tem reconfigurado a estrutura das famílias modernas e o julgador deve estar atento a estas mudanças, para que possa assegurar os direitos, interpretando princípios da lei, concretizando a justiça, mesmo diante da omissão legislativa.
A magistrada ressalta a importância de assegurar os direitos das crianças relativos a alimentos e à sucessão, em caso de divórcio ou falecimento. “Como não há no ordenamento jurídico previsão para estes casos, utilizei o princípio do melhor interesse da criança porque, ao incluir o nome da mãe sócioafetiva, elas estarão melhor resguardadas , no caso de divórcio, quanto ao pleito de alimentos, por exemplo, e em caso de falecimento quanto à partilha do patrimônio”, disse. (sic)

Em 2012, o TJSP já havia inovado acatando pedido semelhante, ementado nos seguintes termos:
MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. 
(TJ-SP - APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2012) 
É bom perceber a sensibilidade dos tribunais pátrios em reconhecer o afeto como valor jurídico constitutivo de entidades familiares e a sua prevalência sobre a letra fria da lei. A lei é fria, a sociedade é dinâmica, para isso existe a atividade hermenêutica. O Direito deve ser reflexo de sua sociedade e não contrário. E na sociedade contemporânea a família é plural.

Fonte da imagem: http://www.mundodastribos.com/adocao-maes-por-amor.html

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Proteção ou Ingerência?

Acredito que a propedêutica de qualquer disciplina do Direito deve passar necessariamente pelos princípios. Dos constitucionais gerais para os mais específicos (força irradiante). E não poderia ser diferente com o Direito de Família.

Assim, o semestre se inicia sempre com o estudo dos princípios atinentes à família, entre eles, o da afetividade, mas gostaria de propor uma reflexão não tão frequente nos manuais.

A Constituição afirma: 
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
O que quer dizer necessariamente essa proteção? Até onde vai a possibilidade de interferência do Estado na autonomia privada dos indivíduos e sua liberdade de se relacionar? É cabivel, por exemplo, uma norma que estabelece a fidelidade recíproca como dever dos cônjuges (e nem o faz em relação aos companheiros)?

Acerca desse assunto, recomendo: A tensão entre a ordem pública e autonomia privada no Direito de Família contemporâneo, capítulo da obra O Direito das Famílias Entre a Norma e a Realidade de Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues.

Já nas notas conclusivas, sintetizam as autoras: 
... os componentes da família podem construir de forma livre o projeto de vida em comum, por serem conscientes das formas sob as quais se realizam em comunhão de vida. Soa ilegítima a interferência de terceiros em matéria de tanta intimidade quando se trata de pessoas livres e iguais, razão pela qual a ingerência do Estado só é válida para garantir o exercício de liberdades.
Nesse mesmo sentido, destaque-se recente julgado do STJ: 
DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. REGIME DE BENS. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. EXIGÊNCIAS PREVISTAS NO ART. 1.639, § 3º, DO CÓDIGO CIVIL. JUSTIFICATIVA DO PEDIDO. DIVERGÊNCIA QUANTO À CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA POR UM DOS CÔNJUGES. RECEIO DE COMPROMETIMENTO DO PATRIMÔNIO DA ESPOSA. MOTIVO, EM PRINCÍPIO, HÁBIL A AUTORIZAR A MODIFICAÇÃO DO REGIME. RESSALVA DE DIREITOS DE TERCEIROS. 1. O casamento há de ser visto como uma manifestação vicejante da liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade essa que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, em um recôndito espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de "asilo inviolável". 2. Assim, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/02 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de se esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada do consortes. 3. No caso em exame, foi pleiteada a alteração do regime de bens do casamento dos ora recorrentes, manifestando eles como justificativa a constituição de sociedade de responsabilidade limitada entre o cônjuge varão e terceiro, providência que é acauteladora de eventual comprometimento do patrimônio da esposa com a empreitada do marido. A divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família é justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens, divergência essa que, em não raras vezes, se manifesta ou se intensifica quando um dos cônjuges ambiciona everedar-se por uma nova carreira empresarial, fundando, como no caso em apreço, sociedade com terceiros na qual algum aporte patrimonial haverá de ser feito, e do qual pode resultar impacto ao patrimônio comum do casal. 4. Portanto, necessária se faz a aferição da situação financeira atual dos cônjuges, com a investigação acerca de eventuais dívidas e interesses de terceiros potencialmente atingidos, de tudo se dando publicidade (Enunciado n. 113 da I Jornada de Direito Civil CJF/STJ). 5. Recurso especial parcialmente provido.
Sendo, pois, a família espaço de busca de felicidade do indivíduo, pode-se ainda caracterizá-la como instituição? Estaria ela acima dos indivíduos que a compõem?

Pra começo de conversa

Mais um semestre letivo se inicia e com ele, vou tentar retomar esse blog. Aos poucos estou descobrindo que funciono melhor quando há muito a ser feito...

Assim, convido meus alunos e simpatizantes a passearem de vez em quando por aqui. Vamos trocar ideias!

Falando em ideias, lancei a ideia pra turma de Sucessões e parece que foi aprovado: Tia Paloma vai atacar também na sala de aula tirando dúvidas de Português! A propósito, vocês estão lembrados que ideia, mesmo bem assentada, perdeu o acento, não é?

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Funções Típicas e Atípicas

Um dos princípios fundamentais da democracia moderna é a separação de poderes. A separação de poderes visa a evitar a concentração absoluta de poder fundamentando-se com as teorias de John Locke e de Montesquieu. Com esse mecanismo, cada uma das funções do Estado pertence a um órgão ou um grupo de órgãos, com controle mútuo por eles exercido (freios e contrapesos). Estes mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada, permitem que os três poderes sejam autônomos, não existindo a supremacia de um em relação ao outro

Assim, temos que a Separação de Poderes é a separação entre as Funções do Estado, de acordo com um critério material. As funções do Estado não são exercidas coincidentemente ou de forma exclusiva por cada um dos Poderes:


  •  função normativa - de produção das normas jurídicas
  • função administrativa - de execução das normas jurídicas;
  • função jurisdicional - de aplicação das normas jurídicas.


As funções exercidas com preponderância por cada um dos Poderes, recebem o nome de funções típicas. Assim, a função típica é a função preponderante de cada um desses órgãos. Dizemos preponderante porque cada um desses Poderes não exerce única e exclusivamente a sua função típica. Do mesmo modo que a sua função típica não é exercida exclusivamente por ele. Todos eles exercem, de forma secundária, as funções exercidas com preponderância pelos outros Poderes. É o exercício das funções atípicas.

Assim, temos:


Ø  Legislativo:
§  Função típica: legislar e fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial do Executivo;
§  Função atípica de natureza executiva: ao dispor sobre sua organização, provendo cargos, concedendo férias, licenças a servidores etc.;
§  Função atípica de natureza jurisdicional: o Senado julga o Presidente da República nos crimes de responsabilidade (art. 52, I).

Ø  Executivo:
§  Função típica: prática de atos de chefia de Estado, chefia de Governo e atos de administração;
§  Função atípica de natureza legislativa: o Presidente da República, por exemplo, adota medida provisória, com força de lei (art. 32);
§  Função atípica de natureza jurisdicional: o Executivo julga, apreciando defesas e recursos administrativos.

Ø   Judiciário:
§  Função típica: julgar (função jurisdicional), dizendo o direito no caso concreto e dirimindo os conflitos que lhe são levados, quando da aplicação da lei;
§  Função atípica de natureza legislativa: regimento interno de seus Tribunais (art. 96, I, a);
§  Função atípica de natureza executiva: administra ao conceder licenças e férias aos magistrados e serventuários (art. 96, I, f).


Segundo o prof. Dirley da Cunha Jr., as atividades administrativas exercidas pelos Poderes Legislativo e Judiciário são atividades meramente auxiliares ou de apoio ao desempenho de suas respectivas funções típicas, sem reflexo imediato na coletividade, uma vez que não cumpre a esses Poderes prestar serviços públicos ou realizar qualquer função de gestão do interesse da comunidade (como calçamento de ruas, coleta de lixo, construção e manutenção de rodovias e prestar os serviços públicos em geral). 

Há que se destacar, contudo, que mesmo se tratando de função atípica, e portanto secundária, a função administrativa exercida pelo Legislativo e pelo Judiciário subordina-se a todas as normas de Direito Administrativo.